Acordão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que absolveu Policiais Militares condenados pelo crime de Tortura.

28-08-2011 14:14

Apelação Criminal nº 2009.045230-9 de Joinville.

Relator: Des. Torres Marques

APELAÇÃO CRIMINAL. TORTURA PRATICADA POR POLICIAIS MILITARES EM CONCURSO DE AGENTES. ARGUIDA A INÉPCIA DA DENÚNCIA POR UM DOS RÉUS. ALEGAÇÃO DE QUE NÃO HOUVE A INDIVIDUALIZAÇÃO DE SUA CONDUTA. VÍCIO NÃO CONSTATADO. CRIME DE AUTORIA COLETIVA. PARTICULARIZAÇÃO DA CONDUTA INVIÁVEL. DESCRIÇÃO DO VÍNCULO SUBJETIVO ENTRE TODOS OS ENVOLVIDOS. NARRATIVA SUFICIENTE À COMPREENSÃO DA IMPUTAÇÃO E À PLENITUDE DO EXERCÍCIO DE DEFESA. PRELIMINAR REPELIDA.

PRETENDIDA A ABSOLVIÇÃO POR AUSÊNCIA DE PROVAS. NEGATIVA DE AUTORIA. POLICIAIS MILITARES QUE CONFIRMAM O EMPREGO DE FORÇA APENAS EM RAZÃO DA RESISTÊNCIA DAS VÍTIMAS À ABORDAGEM. IMPOSIÇÃO DE INTENSO SOFRIMENTO FÍSICO PARA APLICAÇÃO DE CASTIGO CORPORAL E OBTENÇÃO DE INFORMAÇÕES RESTRITA AOS DIZERES DAS VÍTIMAS. CONTRADIÇÕES A RESPEITO DA OCORRÊNCIA. TESE ACUSATÓRIA, ADEMAIS, NÃO CORROBORADA PELOS DEMAIS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO. PRÁTICA DE ATO DE VIOLÊNCIA NÃO RATIFICADA PELA TESTEMUNHA PRESENCIAL. LESÕES ATESTADAS EM LAUDO MÉDICO INCOMPATÍVEIS COM A EXTENSÃO DAS AGRESSÕES MENCIONADAS PELOS OFENDIDOS. ESCORIAÇÕES E EQUIMOSES MAIS CONSENTÂNEAS À NARRATIVA DA DEFESA. DUALIDADE DE VERSÕES. DÚVIDA QUE DEVE SER DIRIMIDA EM FAVOR DOS ACUSADOS. ABSOLVIÇÕES DECRETADAS. RECURSOS PROVIDOS.

Vistos, relatados e discutidos estes autos, da Comarca de Joinville, em que são apelantes Silvano de Oliveira Joaquim, Albert do Espírito Santo, Jeans Cleyton Moser, Claiton Jesus Carvalho, Ted Nelson Marcondes Guimarães, Acir Miranda Júnior, Anderson Pickler, e apelada a Justiça por seu Promotor.

A Terceira Câmara Criminal decidiu, por votação unânime, afastar a preliminar e dar provimento aos recursos. Custas legais.

Participaram do julgamento, realizado no dia 3 de maio de 2011, os Exmos. Des. Alexandre d'Ivanenko e Moacyr de Moraes Lima Filho. Funcionou na sessão, pela Procuradoria-Geral de Justiça, o Exmo. Dr. Sérgio Antônio Rizelo.

Florianópolis, 25 de agosto de 2011.

 

Torres Marques

PRESIDENTE E RELATOR

 

RELATÓRIO

Na comarca de Joinville, o representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra Silvano de Oliveira Joaquim, Albert do Espírito Santo, Jeans Cleyton Moser, Claiton Jesus Carvalho, Ted Nelson Marcondes Guimarães, Acir Miranda Júnior, Anderson Pickler, dando-os como incursos nas sanções do art. 1º, II, c/c § 4º, da Lei n. 9.455/97, em virtude dos fatos assim narrados na exordial acusatória:

Consta do incluso inquérito policial que, em data de 01 de março de 2004, por volta das 02:00 horas, nesta cidade de Joinville/SC, os denunciados Silvano Oliveira Joaquim, Albert do Espírito Santo, Jeans Cleyton Moser, Claiton Jesus Carvalho, Ted Nelson Marcondes Guimarães, Acir Miranda Júnior e Anderson Pickler, todos policiais militares, previamente acordados, em comunhão de esforços, dirigiram até o ponto de Moto-Táxi situado à rua Baltazar Buschle, onde trabalhavam Gleidson Mendes da Silva e Júlio César Moreira dos Santos, que no momento se encontravam dormindo. Ao chegarem no local, os denunciados entraram armados e ordenando que as vítimas ficassem nuas para serem revistadas, a fim de verificar se portavam algum tipo de material ilícito. Nada encontrando, os denunciados iniciaram uma sessão de tortura, desferindo diversos chutes e socos nas vítimas, chegando a ocorrer o sangramento nos dois ouvidos da vítima Gleidson. Não satisfeitos, em atitude covarde e de extrema selvageria, os denunciados conduziram a referida vítima ao banheiro, onde encapuzaram-na dificultando sua respiração e acertaram-na com diversos outros golpes.

 

Enquanto isso, a vítima Júlio permaneceu na sala, sendo igualmente atacado, inclusive com uso de lanternas e prática de chutes contra seu peito e cabeça. Em seguida, os policiais jogaram baldes de água fria nas vítimas, para impedir possíveis desmaios em razão da violência desferida. Agindo com tamanha violência, os denunciados impuseram às vítimas Gleidson e Júlio um grande sofrimento físico com dupla finalidade ilegal, ou seja, com o escopo de obter-lhes confissão acerca de tráfico de drogas ocorrido no Município e aplicar-lhes grave castigo pessoal pela resistência ao 'ato de investigação' a que estavam sendo submetidos, torturando-os impiedosamente e submetendo-os à tratamento desumano e degradante, valendo-se, para tanto, da condição de agentes públicos.

Encerrada a instrução, a denúncia foi julgada parcialmente procedente para:

a) condenar Silvano de Oliveira Joaquim à pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de detenção, em regime aberto, por infração ao disposto no art. 1º, § 2º, c/c § 4º, I, da Lei n. 9.455/97, cuja execução foi suspensa, nos termos do art. 77 do Código Penal;

b) condenar Albert do Espírito Santo, Jeans Cleyton Moser, Claiton Jesus Carvalho, Ted Nelson Marcondes Guimarães, Acir Miranda Júnior, Anderson Pickler, cada qual, às penas de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime fechado, todos por infração ao disposto no art. 1º, I, 'a', e II, c/c § 4º, I, da Lei n. 9.455/97.

 

Irresignados, os acusados interpuseram recursos de apelação (fls. 653/657, 667 e 698).

Anderson e Acir requereram a absolvição por falta de provas, forte no in dubio pro reo, ao argumento de que a tese acusatória se limita às versões contraditórias apresentadas pelas supostas vítimas (fls. 671/691) .

Claiton também postulou sua absolvição por insuficiência de provas à manutenção do édito condenatório. Do contrário, pleiteou a desclassificação para o crime de lesão corporal leve e a consequente extinção da punibilidade pelo advento da prescrição da pretensão punitiva, na forma retroativa (fls. 699/711).

Jeans, da mesma forma, postulou a absolvição com base na anemia probatória, porquanto sequer a identificação dos supostos agressores foi demonstrada no curso da instrução. Sucessivamente, pleiteou a desclassificação do crime de tortura para sua forma omissiva ou, ainda, para os delitos de abuso de autoridade ou de lesões corporais leves (fls. 781/793).

Albert pugnou pela absolvição também com fulcro na ausência de provas à condenação, pois alicerçada a tese da acusação apenas em palavras contraditórias das vítimas e em exame de corpo de delito que não comprova a tortura a que teriam sido submetidos. Caso não seja esse o entendimento, postulou a desclassificação para o delito de lesão corporal leve e a extinção da punibilidade pelo advento da prescrição da pretensão punitiva. Ao final, a defensora requereu a fixação dos honorários advocatícios por ter sido nomeada para interpor o recurso (fls. 808/815).

Ted Nelson arguiu, em sede preliminar, a inépcia da denúncia por não descrever de maneira individualizada sua conduta. No mérito, também requereu a absolvição por falta de provas e, sucessivamente, a desclassificação do crime de tortura para eventual abuso de autoridade ou lesões corporais leves (fls. 842/849).

Silvano requereu a absolvição por não haver prova de sua omissão, à medida que inclusive as vítimas o isentaram de qualquer responsabilidade em relação às agressões que teriam sofrido por parte dos demais policiais (fls. 887/891).

Ofertadas as contrarazões (fls. 851/860, 900/909), ascenderam os autos a esta superior Instância, opinando a Procuradoria Geral de Justiça, em parecer da lavra do Exmo. Dr. Raul Schaefer Filho, pelo desprovimento dos recursos (fls. 911/919).

VOTO

Trata-se de recursos de apelação interpostos por Silvano de Oliveira Joaquim, Albert do Espírito Santo, Jeans Cleyton Moser, Claiton Jesus Carvalho, Ted Nelson Marcondes Guimarães, Acir Miranda Junior e Anderson Pickler contra sentença que os condenou pela prática do crime de tortura, o primeiro na forma omissiva e os demais na modalidade comissiva.

A princípio, impende analisar a hipótese de inépcia da denúncia arguida preliminarmente pelo recorrente Ted Nelson, sob o argumento de que a exordial não descreveu de maneira pormenorizada sua atuação no fato delituoso narrado pela acusação e indistintamente atribuído a todos os acusados.

Por certo, a denúncia deve conter a descrição da conduta ilícita e da atividade dos respectivos agentes com todas as circunstâncias necessárias à maior amplitude da defesa, razão pela qual, sempre que possível, deverá retratar o desenrolar da ação delitiva de forma minuciosa e próxima dos acontecimentos a fim de garantir a plenitude do contraditório assegurado aos réus para, assim, se oporem às imputações que lhes foram atribuídas.

Ocorre que, no caso dos autos, a exordial imputou a todos os sete policiais denunciados, em concurso de pessoas, a prática de atos de violência e de tratamento degradante contra as vítimas a fim de obterem eventual confissão de crime e submetê-las a castigo corporal pela resistência inicialmente esboçada, à medida que todos teriam concorrido para a infração de maneira homogênea e em unidade de desígnios.

Nesse viés, como o delito descrito foi perpetrado em concurso de agentes, mediante ação conjunta e mutuamente ajustada para o mesmo fim, não se afigura indispensável a plena particularização da conduta praticada por cada um, especialmente quando a narrativa permitiu-lhes a adequada compreensão da imputação atribuída, porquanto, do contrário, seria impossível processar os responsáveis por fatos delituosos que, em virtude do seu modo de execução, não permitissem a exata individualização das ações isoladas praticadas pelos vários envolvidos.

A propósito, tem decidido o Superior Tribunal de Justiça:

A denúncia, nos crimes de autoria coletiva, embora não possa ser de todo genérica, é válida quando, apesar de não descrever, minuciosamente, as atuações individuais dos acusados, demonstra um liame entre o agir do paciente e a suposta prática delituosa, estabelecendo a plausibilidade da imputação e possibilitando o exercício da ampla defesa, caso em que se entende preenchidos os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal (Precedentes). (HC 125102/MT, rel. Min. Jorge Mussi, j. 25/11/2010).

No mesmo sentido:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. TORTURA. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ: APLICAÇÃO AO PROCESSO PENAL SOMENTE A PARTIR DA VIGÊNCIA DA LEI 11.719/2008. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.

1. Não há que se falar em inépcia da denúncia que descreve suficientemente os fatos, com a indicação da data, o local, o modo de execução do crime e a sua capitulação jurídica, de modo a permitir o pleno exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório, não se exigindo, a depender da natureza do crime e, em especial, quando se trata de crime praticado em concurso de pessoas, a descrição minuciosa de todos os atos que teriam sido efetivamente praticados pelos denunciados. Precedentes.

2. O princípio da identidade física do juiz, embora previsto no artigo 132 do Código de Processo Civil, somente passou a ser aplicado no processo penal após a vigência da Lei 11.719/2008, que alterou o artigo 399, § 2º, do Código de Processo Penal.

3. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (AgRg no REsp 681149/SE, rel. Min. Celso Limongi, j. 23/3/2010).

 

Dessa forma, por estar suficientemente descrito o fato imputado aos agentes, ainda que não tenha sido minuciosamente narrada a participação de cada um na conduta homogênea praticada, afasta-se a preliminar de inépcia da denúncia por ausência de individualização suscitada pelo apelante Ted Nelson e, consequentemente, passa-se à análise do mérito dos recursos interpostos por ele e pelos demais acusados.

Narra a denúncia que as vítimas foram abordadas na madrugada do dia 1º de março de 2004 enquanto estavam no ponto de moto-táxi onde ambos trabalhavam, oportunidade em que tiveram de ficar nus para serem revistados e foram submetidos à sessão de tortura – mediante socos, pontapés e asfixia – a fim de que confessassem seu envolvimento no tráfico de drogas e recebessem grave castigo pessoal por conta da inicial resistência à "investigação".

Em juízo, o policial militar Silvano asseverou ter se dirigido ao local abordado pelos outros acusados para averiguar denúncia de tráfico de drogas. Textualmente, consignou:

que a abordagem no ponto realmente aconteceu; que ficou sabendo sobre a abordagem e foi até o local; que quando lá chegou outras duas viaturas já estavam no local; que os dois rapazes estavam do lado de fora do ponto, com as mãos na parede; que o depoente fez buscas no local e nada encontrou; que as denúncias eram de que o local era usado para ponto de tráfico; que o depoente permaneceu no local por cerca de quinze a vinte minutos e foi embora, sendo que os demais policiais permaneceram, posto que ainda estava averiguando as placas dos veículos; que os rapazes não estavam machucados; que o depoente não presenciou nenhuma agressão física. (fl. 157).

Os demais agentes, por sua vez, mencionaram que a abordagem ao ponto de moto-táxi foi por eles realizada em virtude de um roubo ocorrido naquela madrugada e da possível participação de moto-taxistas no crime. Todos, porém, ressalvaram não ter havido violência contra os ofendidos, apesar de alguns deles assumirem que foi necessário o emprego de força para a realização das revistas pessoais e buscas no estabelecimento abordado.

Albert do Espírito Santo asseverou:

que havia ocorrência de roubo com suspeita de moto-taxista; que fizeram a abordagem no ponto do Boa Vista e no que fica em frente ao Hospital Regional e por fim no endereço indicado na denúncia; que em nenhum momento houve tortura; que no local estavam as duas vítimas; que quando as duas vítimas viram a polícia chegando correram para dentro e não obedeceram a ordem de sair; que então usaram da força para tirar as duas vítimas para fora; que nenhuma vítima ficou machucada e também não houve violência; que nisto chegou a viatura do P2 e outra viatura; que os policiais do P2 fizeram buscas; que durante as buscas o telefone do ponto tocou e uma das vítimas, por orientação da polícia, atendeu, sendo que o pedido era de lanche; que então o P2 comentou que havia denúncias de tráfico no local; que checaram as placas dos veículos; que em seguida houve ocorrência na lanchonete XL, tendo a viatura do P2 saído com a viatura do depoente logo atrás; que no total a abordagem foi com quatro viaturas, uma delas da P2; que quando a viatura da P2 saiu, a viatura do depoente saiu junto e, igualmente, as duas outras viaturas saíram para outras rondas, todos juntos; que não cadastraram nenhuma das abordagens nos pontos de táxi naquela noite; que apenas registraram a abordagem num último ponto de táxi, onde encontraram uma carteira da vítima do roubo; que o policial responsável pelo cadastro se equivocou e achou que tinha feito este. (fl. 160).

Jeans Cleyton Moser destacou:

que na ocasião receberam a comunicação de roubo, com suspeita de que um dos agentes era moto-taxista; que a viatura do depoente, onde estava também o Acir, fez a primeira abordagem já no ponto indicado na denúncia; que quando chegaram no ponto, já havia duas viaturas, sendo que as vítimas estavam do lado de fora, com as mãos na parede; que as vítimas não estavam lesionadas; que o depoente ficou encarregado da segurança externa; que então chegou a viatura da P2; que em buscas nada foi encontrado; que as vítimas permaneceram o tempo todo fora do ponto, tendo uma entrado apenas para atender uma chamada telefônica por orientação da polícia, pois o P2 informou que o ponto era objeto de denúncia de drogas; que terminada a abordagem, a viatura da P2 junto com a viatura do Anderson Pickler saíram juntas para atender uma ocorrência; que a viatura do depoente e a viatura do Cleiton e Ted saíram logo em seguida para mais rondas; que a viatura do depoente fez a abordagem em mais um ponto de moto-táxi onde lograram encontrar objetos do roubo que estava sendo investigado; que não recorda sobre lanchonete próxima, sendo que a danceteria Escalibur estava funcionando e era próxima; que os populares presenciaram a abordagem da polícia. (fl. 166).

Claiton Jesus Carvalho ponderou:

que havia ocorrência de assalto cuja suspeita recaia sobre um moto-taxista; que a viatura do depoente junto com a viatura do Anderson fizeram a abordagem de dois pontos, um no Boa Vista e um em frente ao Hospital Regional; que então fizeram a abordagem no terceiro ponto, no caso aquele indicado na denúncia; que quando chegaram no ponto as vítimas, ao verem a polícia, imediatamente entraram e não acataram a solicitação de que saíssem; que então usaram da força necessária para retirar as vítimas para fora, sem que, porém, em nenhum momento as tivessem agredido; que nisto chegou a viatura do Acir, junto com a viatura do P2; que fizeram buscas e nada encontraram, sendo que as duas vítimas ficaram o tempo todo fora do ponto; que próximo havia um baile e um lanchonete abertos; que os populares presenciaram a abordagem; que após a abordagem todas as viaturas, inclusive a da P2, saíram do local no mesmo tempo; que finalmente, a viatura do depoente junto de outra, pelo que recorda, fizeram a abordagem em mais um ponto, na rua Ponte Cerrada, onde lograram encontrar a carteira da vítima do roubo que investigavam. (fl. 172).

Ted Nelson afirmou:

que em nenhum momento houve tortura, tão pouco agressão; que houve ocorrência de roubo no Boa Vista, sendo que a informação era que o assaltante fugiu numa moto pilotada por outra pessoa; que a base informou à viatura do depoente; que em razão disso, como em casos semelhantes já tinha havido envolvimento de ponto de moto-táxi, passaram a fazer buscas nesses pontos; que a viatura do depoente, onde o depoente estava acompanhado do soldado Claiton, abordaram um ponto de moto-táxi no Boa Vista, nada encontrando; que em seguida abordaram um ponto de moto-táxi perto do Hospital Regional, também nada encontrando; que depois abordaram o ponto indicado na denúncia; que quando chegaram com a viatura, outra viatura com dois outros policiais chegou quase que ao mesmo tempo; que quando chegaram, havia dois rapazes no ponto que se mostraram surpresos e fizeram menção de entrar no ponto; que de imediato fizeram a abordagem e impediram que os rapazes entrassem; que em princípio os rapazes reagiram, dizendo que os policiais não tinham direito de fazer a abordagem; que mesmo assim fizeram buscas pessoais nos rapazes e nada encontraram; que em nenhum momento entraram com os rapazes no ponto; que apenas em determinado momento o telefone tocou e o depoente acompanhou um dos rapazes para dentro do ponto, tendo este atendido ao telefone e, após, retornado com o depoente para fora; que a porta do ponto era de rolo e quem estava fora tinha pelo acesso visual do lado de dentro, inclusive do local do telefone; que o policial P2, no caso o Silvano, apareceu no local depois que já tinham feito a busca pessoal, mas antes do telefonema; que assim que o depoente saiu com o rapaz após o telefonema, a operação no local terminou e todos foram embora; que continuaram as buscas, sendo que uma viatura foi atender a outra ocorrência e outras ingressaram nas buscas; que finalmente fizeram uma abordagem em um ponto na rua Ponte Serrada, onde conseguiram deter o assaltante; que no ponto indicado na denúncia, cerca de três viaturas e a do P2 fizeram a abordagem. (fls. 271/272).

Acir Miranda Junior esclareceu:

que havia ocorrência de assalto com suspeita sobre um moto-taxista; que outras viaturas já estavam fazendo abordagens em pontos; que a viatura do depoente então se dirigiu ao ponto indicado na denúncia; que antes disso ainda encontraram o P2 Silvano e comentaram a respeito, tendo a viatura do Silvano seguido e chegado junto; que quando chegaram as duas vítimas estavam do lado de fora, com as mãos na parede, pois outras duas viaturas já estavam no local; que as vítimas não aparentavam estarem machucadas; que as vítimas permaneceram o tempo todo fora do ponto; que o telefone do ponto chegou a tocar, mas o depoente não recorda de que alguma vítima tenha entrado para atender; que nas buscas nada encontraram; que populares presenciaram a abordagem, pois havia baile na danceteria Escalibur e um bar aberto ao lado, ambos próximos do ponto; que primeiro uma viatura saiu para atender um chamado, sendo seguida da viatura do P2; que em seguida a viatura do depoente junto com a última também sairam para continuar as rondas; que a viatura do depoente e outras duas fizeram uma ultima abordagem no ponto da rua Ponte Cerrada onde lograram encontrar objetos do roubo investigado, bem como realizaram prisões (fl. 169).

Por fim, Anderson Pickler aduziu:

que estavam investigando um assalto acontecido, com suspeita de moto-taxista; que abordaram dois pontos de táxi, um no Boa Vista e outro em frente ao Hospital Regional, nada encontrando; que o terceiro ponto foi o indicado na denúncia; que chegaram em duas viaturas e as vítimas que estavam do lado de fora imediatamente entraram no ponto; que pediram para as vítimas saírem; que as vítimas não atenderam e então tiveram que usar da força para retira-las para fora; que colocaram as vítimas encostadas com as mãos na parede; que então chegou outra viatura e mais uma quarta da P2; que foram feitas buscas no local e nada foi encontrado; que o telefone do ponto tocava muito, mas não recorda se houve algum atendimento; que depois da abordagem tiveram que sair para a ocorrência próximo à lanchonete XL; que saíram junto com a viatura da P2; que as duas outras viaturas também já estavam saindo do local naquele momento; que próximo ao ponto havia uma lanchonete aberta com fregueses e também estava funcionando um baile num salão próximo; que que muitos populares presenciaram a abordagem; que depois da abordagem foram até mais um quarto ponto de moto-táxi, onde lograram apreender objetos e prender os agentes do roubo que investigavam; que fizeram o cadastro apenas da abordagem no último ponto, pois as três anteriores, inclusive a da denúncia, foram breves e o comum é não cadastrar estas situações. (fl. 163).

 

Nesse particular, cumpre salientar que a versão atinente à diligência relacionada à apuração de roubo na madrugada dos fatos encontra conforto no registro de ocorrência n. 451171, onde consta que as guarnições efetivamente estavam à procura dos autores do mencionado delito patrimonial (fls. 62/63).

Com isso, a partir do revolvimento das declarações fornecidas pelos policiais durante procedimento instaurado pela Corregedoria do 8º Batalhão da Polícia Militar e dos interrogatórios prestados perante a autoridade jurisdicional, é possível perceber que todos os acusados refutaram qualquer agressão dirigida contra os ofendidos, os quais tão somente teriam sido submetidos à força física necessária para coibir sua resistência à abordagem policial.

Os ofendidos, é bem verdade, apresentaram versão diametralmente oposta à dos agentes estatais, pois narraram a ocorrência de tortura no interior do ponto de moto-táxi – seja por meio de força física ou de ameaças – com o fim de impingir-lhes sofrimento e arrancar-lhes informações ou confissão pelo crime de tráfico de drogas, pois o local era conhecido como ponto de venda.

A vítima Gleidson Mendes da Silva afirmou que ele e seu colega Júlio César foram abordados por policiais militares fardados que os revistaram na parte externa do ponto, mas nada foi encontrado. Ato contínuo, foram colocados no interior da sala e obrigados a tirar a roupa. Antes de serem autorizados a se vestir, relatou, porém, que Julio recebeu um soco nas costas desferido por um dos policiais. Depois disso, vasculhada a sala do ponto e colocados contra a parede, foram os dois questionados sobre o "bagulho", mas, diante da negativa, "um dos policiais passou a agredir o declarante com socos no peito, sempre  perguntando sobre a droga" e lhe "desferiu vários tapas com bastante violência, a ponto de sangrar ambos ouvidos". Na sequência, disse que foi levado até o banheiro por dois policiais, onde teve sua cabeça envolvida num saco de lixo preto por um dos agentes enquanto o outro lhe dava socos e golpes de lanterna. Narrou ter conseguido rasgar o saco quando estava ficando sem ar e que os policiais iriam algemá-lo para que não pudesse fazer isso novamente, mas não o fizeram pois um agente à paisana chegou e determinou o fim das agressões, que, no entanto, continuavam em sua ausência. Afirmou ter pedido para que parassem, "mas os policiais falaram que só parariam se alegassem que ali havia bagulho" e um deles, inclusive, "disse para o declarante entregar seu colega na delegacia, pois afirmou ter a droga para forjar um flagrante". Relatou que a violência apenas chegou ao fim quando o policial à paisana se posicionou na porta do banheiro e disse que bastava. Permaneceu, depois, sentado no vaso sanitário enquanto ainda ouvia seu colega Julio ser agredido, à medida que ouvia pancadas e gemidos (fls. 11/12).

Júlio César também confirmou que três viaturas da polícia militar e, na sequência, um veículo Fiat/Siena, de cor preta, abordaram o ponto de moto-táxi na madrugada do dia 1º de março de 2004.  Primeiramente, esclareceu que foram revistados do lado de fora com bastante violência e que um dos agentes tomou a chave de sua moto e tentou abrir a lateral em busca de drogas, mas não encontrou nada. Depois disso, ele e seu colega teriam sido levados para dentro do estabelecimento, onde tiveram de ficar nus e veio a ser agredido nas costas por um dos policiais. Asseverou que Gleidson foi levado para o banheiro e ele permaneceu na sala, onde foi agredido com socos e chutes. Igualmente afirmou que tentaram colocar um saco em sua cabeça, mas se esquivou e impediu que isso acontecesse. Acrescentou que as agressões apenas terminaram quando o policial do Siena disse que bastava. Destacou, ademais, que um dos policiais fardados indagou o agente à paisana "se iriam derrubar o declarante e seu colega no presídio, pois a droga estava na mão, mas o policial à paisana disse que só se derrubasse no chute, pois os rapazes não tinham nada". Relatou que, somente quando todos deixaram o local, é que foi até o banheiro e encontrou Gleidson sentado sobre o vaso sanitário com os ouvidos sangrando (fls. 13/14).

Em juízo, da mesma forma, as duas vítimas tornaram a ratificar o sofrimento que lhes foi causado pelos policiais militares mediante emprego de violência e ameaças no intuito de conseguirem obter informações ou eventual confissão sobre o tráfico de drogas que seria realizado por intermédio daquele ponto de moto-táxi.

Nesse enfoque, consignou Gleidson Mendes da Silva:

que com o depoente os policiais já foram violentos desde o momento da busca pessoal; que com o Julio passaram a ser violentos um pouco depois; que presenciou os policiais agredindo o Julio; que o depoente levou muito soco no peito e tapa no rosto e depois o depoente e o Julio foram separados, sendo o depoente levado para dentro do banheiro; que eram cerca de oito policiais; que os policiais se alternavam em grupos de quatro no banheiro com o depoente e no outro ambiente com o Julio; que ali começaram as perguntas; que os policiais queriam que o depoente 'caguetasse' o Julio; que não havia o que 'caguetar'; que levou chutes na costela, lanternadas na cabeça; que o médico viu estas lesões; que colocaram uma sacola plástica na cabeça do depoente e seguraram as mãos do depoente para trás; que iam algemar as mãos do depoente, mas o policial do Siena disse que não; que a sacola na cabeça do depoente era transparente; que chegaram a ameaçar a cortar a orelha do depoente; que no final um dos policiais pediu para ir embora e a polícia deixou o local; que os policiais, antes de sair, ainda se preocuparam em jogar um caneco da água na cara do depoente e do Julio, acreditando que fosse para estes não desmaiarem; que não ouviu alguma ameaça da polícia na saída; que lido a respeito da declaração de fls. 10 sobre terem sido encostados na parede do lado de fora, o depoente disse que não recorda ao certo; que confirma o dito de que, de início, a revista foi normal, mas que dentro, após ter tirado a roupa e voltar a vestir, levou um soco nas costas; que quando estava se sufocando, conseguiu escapar a mão e tentou tirar o saco de sua cabeça; que por isso é que tentaram algemar o depoente; que com o saco na cabeça era agredido com chutes na costela e joelhadas no ouvido; que todos os policiais agrediam, inclusive se revesando; que o policial do Siena no depoente não encostou a mão. [...] que no que se refere a como pode se lembrar que teve que tirar a roupa e não se lembra se foi revistado do lado de fora, o depoente respondeu que são detalhes e que não tem como responder; que em nenhum momento perguntaram ao depoente sobre tênis, carteira ou algum bem (fls. 334/335).

Por sua vez, Júlio César Moreira dos Santos esclareceu:

que os policiais de imediato entraram no ponto e passaram a questionar sobre droga e compra de um tênis, dentre várias outras perguntas; que os policiais passaram a agredir o depoente e o Gleidson, que ficava no ponto atendendo aos telefonemas; que chegaram a encostar canivete no pescoço do depoente; que também colocaram saco plástico na cabeça do depoente; que em determinado momento o depoente quase desmaiou em razão das agressões; que então os policiais jogaram um balde de água no depoente; que o depoente era colocado na parede e recebia pontapés no peito; [...] que restou machucado e foi submetido à exame; que o médico do Hospital Regional encaminhou o depoente à Delegacia para fazer o exame de corpo de delito; que todos os policiais estavam fardados, salvo um deles que estava à paisana; que o policial à paisana foi o primeiro a chegar e adentrar no ponto; que foi levado para fora do ponto apenas no momento em que tinha que abrir a lateral da sua moto; [...] que lido o teor do depoimento à fl. 13 sobre o veículo Siena ter chegado mais tarde, o depoente disse que na ocasião estava dormindo e que os veículos chegaram ao mesmo tempo, reafirmando que o policial do Siena entrou primeiro; que no que se refere à declaração de fl. 14 sobre ter o policial do Siena chegado ao local e declarado que já bastava e iam embora, o depoente insiste que na realidade o policial do Siena estava todo o tempo no local; [...] que também referente ao depoimento de fl. 13, de que se encostaram na parede do lado de fora, reafirma que, na realidade, foi do lado de dentro; que não sabe dizer por que fez as declarações em questão, mesmo porque faz muito tempo; que a cabeça do depoente ficou machucada em razão dos golpes com a lanterna; que o médico legista examinou a cabeça do depoente; [...] que o depoente viu algumas vezes o Glaidson sendo agredido, sendo que porém, na maioria das vezes, ele ficou dentro do banheiro (fls. 332/333).

Por oportuno, como observou a defesa dos acusados em relação aos depoimentos prestados por Gleidson e Júlio César, os dizeres destes contêm algumas imprecisões quanto aos acontecimentos ocorridos na data dos fatos, à medida que ora se referiram à revista pessoal fora do ponto de moto-táxi, ora relataram que ocorreu em seu interior. Além disso, enquanto um deles asseverou que os policiais perguntaram sobre tênis e outros bens, o outro disse que não foram indagados a respeito disso. Outrossim, num momento diziam que o policial à paisana havia chegado depois dos outros, mas noutro já observaram que ele participou de toda a abordagem.

Com efeito, o que se verifica até então é a dualidade de versões a respeito do que teria acontecido durante a diligência policial, pois, de um lado, os agentes estatais sustentam ter realizado procedimento regular e utilizado a força estritamente necessária para repelir a inicial reação das vítimas à abordagem e, de outro, os ofendidos retratam a ocorrência de múltiplas e sucessivas agressões pelos militares com o fim de impingir-lhes sofrimento e obter informações.

Isoladas, uma e outra contêm elementos que se harmonizam com parte do acervo probatório coligado. No entanto, quando reunidas, evidenciam colidências que não permitem resolver, nessas circunstâncias, a controvérsia em favor de quaisquer das duas narrativas que se antagonizam, razão pela qual se faz necessário o sopesamento dos demais elementos de convicção angariados no curso do processo para verificar qual delas prepondera.

Por um lado, corroboram os relatos dos ofendidos as declarações então prestadas por Jurandir dos Santos, pai de Júlio César, o qual confirmou ter encontrado ambos no ponto de moto-táxi, logo após o ocorrido, machucados e lesionados, ocasião em que os conduziu ao hospital e de lá foram posteriormente encaminhados à delegacia de polícia para exames médicos.

Às perguntas que lhe foram dirigidas, respondeu o genitor:

que na ocasião estava dormindo quando alguém da Tupy chamou o depoente; que era mais de três horas da manhã; que a pessoa disse que o filho do depoente estava caído no ponto de moto-táxi; que o depoente perguntou se era acidente de trânsito, tendo a pessoa dito que pelo jeito tinha sido a polícia que tinha batido nele; que foi até o local e encontrou o Julio, seu filho, mais o Gleidon sentados num canto, dentro do ponto; que ambos estavam machucados, molhados; que o Julio estava com o ombro deslocado e o Gleidson sangrava no ouvido; que o ponto estava todo revirado; que as vítimas disseram que a polícia chegou no local e que eles estavam até dormindo, mas a polícia começou a revirar tudo; que o filho do depoente contou que foi bastante agredido e humilhado; que chegaram a colocá-lo contra a parede e deram pontapé no peito dele; que o filho disse que o peito doía muito; que levou os dois até o hospital; que o médico fez o atendimento, mas encaminhou as vítimas até a Delegacia para exame do médico legista; que após este exame, todos foram encaminhados ao Batalhão da Polícia Militar; [...] que o peito do Julio ficou vermelho, tendo o Julio dito que era em razão das agressões; que não sabe dizer se a polícia chegou a ir ao local depois dos fatos para constatação (fls. 336/337).

De outro vértice, contudo, a versão dos policiais militares segundo a qual a diligência não extrapolou a normalidade encontra conforto no depoimento judicial da testemunha Miguel Antunes Valêncio, que teria presenciado toda a abordagem ao ponto de moto-táxi.

Em suma, relatou o referido testigo:

Na ocasião dos fato, o depoente estava num bar e presenciou a abordagem dos policiais no ponto; que não sabe dizer se a polícia chegou com uma ou mais viaturas; que não sabe dizer quantos policiais atuaram; que na saída, viu o Acir passando; que o Acir cumprimentou o depoente; que não sabe dizer quanto à movimentação no ponto; que depois que a polícia saiu, o depoente nada mais viu, pois logo saiu também, que não conhecia os moto-taxistas; [...] que alguns policiais entraram no ponto; que viu duas pessoas abordadas, que ficaram encostadas na parede com as mãos para cima; nas imediações tinha um baile; [...] que em nenhum momento viu os dois abordados serem levados para dentro do ponto; que viu a abordagem do início ao fim; que ainda assim confirma que não sabe quantas viaturas eram, quanto tempo demorou a abordagem e se havia movimentação no ponto; que quando viu a situação; os dois abordados já estavam na parede; não sabendo onde estava antes; que não tinha nenhum conhecido no bar e estava sozinho; que em nenhum momento viu os abordados caírem; que não recorda a roupa dos abordados, sequer se estavam de calça ou bermuda; que não viu se tinha algum policial sem farda (fl. 426).

De se notar, portanto, que a única testemunha presencial da ação dos policiais não assistiu a qualquer agressão contra as vítimas, que, segundo ele, permaneceram do lado de fora do estabelecimento enquanto a abordagem era realizada nas dependências do ponto.

Mais uma vez, portanto, mesmo depois de feito o confronto dos dois testemunhos relevantes à apuração dos fatos ocorridos naquela madrugada, não se pode deixar de observar que a versão acusatória não prevalece sobre a dos acusados e vice-versa, uma vez que tanto a primeira como a segunda restaram, de alguma forma, secundadas por elementos de convencimento produzidos no curso da instrução processual.

Nesse particular, todavia, assume especial relevo a circunstância de que a tese das vítimas foi corroborada pelo depoimento do pai de uma delas, que apenas se reportou ao estado em que as encontrou depois da abordagem e reproduziu somente aquilo que o filho lhe contou, enquanto que a narrativa dos acusados restou confortada pelos dizeres de testemunha que presenciou a ação do início ao fim e não percebeu nenhuma agressão por parte dos policiais, que mantiveram os ofendidos do lado de fora do ponto durante a diligência.

Não bastasse a existência de dúvidas até então verificadas quanto ao desenrolar da abordagem policial, talvez o elemento probatório mais relevante à sua elucidação, a saber, o exame de corpo de delito, tampouco permite acolher a imputação delitiva que foi atribuída aos acusados.

Do ponto de vista formal, embora se insurjam os apelantes quanto à existência de simples cópias dos laudos médicos, consoante bem assinalou o Promotor de Justiça, Dr. Marcelo S. Netto de Campos, nas suas contrarrazões, tal irregularidade não tem o condão de prejudicar a análise do teor dos exames a que foram os ofendidos submetidos.

A propósito, extrai-se de sua manifestação o seguinte aresto:

Por sua volta, ao revés do que apregoam os réus, não há qualquer espécie de vício nos documentos de fls. 31 e 32, cópias reprográficas dos laudos periciais de corpo de delito que atestaram as lesões sofridas pelas vítimas. Embora forçoso reconhecer que a boa técnica recomendaria a juntada de seus originais, o fato é que a ampla defesa mais uma vez foi devidamente oportunizada, tanto é que os apelantes rechaçaram minuciosamente os conteúdos das perícias inclusive a fim de tentar demonstrar, sem êxito, a inocorrência de torturas.

Não se olvide, de toda maneira, que meras irregularidade não afastam a validade dos documentos em apreço com instrumento probante, em especial porque consabido que não existe tarifação de provas no ordenamento normativo pátrio, sendo livre o magistrado para formar seu convencimento motivado desde que cingido aos elementos constantes dos autos. (fl. 859).

Nada obstante, impende enfatizar que o conteúdo dos laudos não confirma efetivamente a prática de tortura a que os dois ofendidos disseram ter sido submetidos, porque os médicos legistas verificaram lesões mínimas que não se coadunam com a intensa violência retratada pelas vítimas.

Infere-se dos exames de corpo-delito acostados às fls. 31/32 que tanto Júlio César quanto Gleidson relataram ter sofrido agressões no mesmo dia da realização da avaliação médica, ocasião em que foram constatadas equimose no cotovelo e escoriações nas pernas do primeiro e placa equimótica na parede lateral do tórax do segundo.

O médico legista, inclusive, ratificou em juízo a subscrição dos laudos periciais e esclareceu seus apontamentos quanto às lesões verificadas. Nesses termos, expressou Marcelo F. dos Santos:

que com referência ao auto de fl. 31 consta em letra  corrida que o examinado apresenta equimose em tornozelo esquerdo e escoriações, e no quesito segundo consta lesões de energia mecânica contundente; que como se trata de cópia não consegue interpretar integralmente o consignado; que no referente ao auto de fl. 32 consta, pelo que consegue extrair, apresentar placa equimótica, parede lateral do tórax, à direita, sendo que no segundo quesito, indica energia mecânica contundente; que o procedimento geral é de avaliar integralmente o corpo do examinado, sendo que previamente é perguntado sobre alguma lesão (fl. 414).

Ocorre, porém, que as intensas e repetidas sevícias narradas pelas vítimas não se identificam com as lesões por elas apresentadas horas depois. Ao contrário, os vestígios percebidos no corpo dos ofendidos mostram que não teria acontecido violência na proporção reiteradamente desenhada por Júlio César e Gleidson. tanto na fase policial como em juízo. para alicerçar a prática da tortura.

Gize-se que o minucioso relato dos dois ofendidos e do pai de um deles anuncia que ambos sofreram inúmeros chutes, joelhadas, tapas, socos e golpes de lanterna, a ponto de um ter sangramento pelos ouvidos e o outro sofrer deslocamento do ombro, o que, em tese, sugere a selvageria do procedimento policial levado a efeito naquela oportunidade.

Esta narrativa, por sua vez, embora bem arquitetada entre as duas vítimas, colide frontalmente com o teor do exame médico ao qual se submeteram no mesmo dia dos fatos, pois os peritos encontraram lesões que muito mais se aproximam da utilização da força necessária para contê-los – assertiva aduzida pelos policiais – do que da efetiva prática do castigo corporal na forma noticiada.

Por certo, não seria a maior ou menor extensão das ofensas físicas praticadas que implicaria ou não a caracterização do crime de tortura, porquanto tais peculiaridades apenas interfeririam na configuração da forma qualificada do crime no caso de superveniência de lesão grave, gravíssima ou morte.

Outrossim, eventual utilização de métodos de tortura com emprego de técnicas capazes de mascarar a violência impingida às vítimas certamente poderia passar despercebida em exame médico posterior, haja vista que esses artifícios não costumam deixar vestígios estampados no corpo dos ofendidos.

O que chama a atenção no caso em evidência, no entanto, é que as mínimas lesões descritas não correspondem à impetuosa violência física que as vítimas alegaram ter sofrido por parte de seis policiais militares, os quais, nos termos da narrativa declinada, haviam impingido prolongado sofrimento corporal por meio de uma longa série de golpes contundentes contra os dois ofendidos.

A prova do crime de tortura, em geral, se mostra deveras intrincada e usualmente demanda maior perspicácia do julgador para converter os precários elementos cognitivos – porque normalmente restritos aos dizeres dos envolvidos –  em convencimento válido acerca da materialidade e da autoria, o qual somente pode ser atingido, em circunstâncias tais, quando cotejados o relato das vítimas, os laudos periciais e as explicações apresentadas pelos acusados para justificar sua atuação desta ou daquela maneira.

Na hipótese, contudo, o acervo não ultrapassa esse confronto, uma vez que o conjunto probatório amealhado, embora aponte indícios de que possa ter pertinência a tese acusatória, não ratifica de modo concreto a superveniência da tortura descrita na denúncia, em especial quando igualmente coexistem nos autos elementos outros capazes de colocar em xeque o articulado pelas vítimas e enaltecer a justificativa dos agentes públicos para esclarecer eventuais lesões constatadas no laudo médico, as quais guardam similitude com as explicações destes e divergem substancialmente da narrativa daqueles.

Em se tratando de crime de tortura, colhe-se da jurisprudência:

A condenação em crime de tortura exige prova límpida e irrefutável de que o agente público causou na pessoa, mediante violência ou ameaça, sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima. Prova frágil, consistente tão-só nos depoimentos das vítimas, cuja conduta censurável, compromete suas declarações, sobretudo por contrariar outros e importantes pontos do contexto probatório, não autoriza o decreto condenatório (Apelação Criminal n. 1.0267.04.910501-3/001, rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, j. 7/4/2005).

E ainda:

Para a caracterização do crime de tortura é necessário que os elementos de convicção reunidos nos autos indiquem, com segurança e certeza, que os agentes públicos tenham causado à vítima agressão geradora de intenso sofrimento físico ou mental. Caso contrário, com base no princípio da presunção de não-culpabilidade, a absolvição deve prevalecer. (Apelação Criminal n. 1.0239.04.001342-1/001, rel. Des. Paulo César Dias, j. 23/11/2010).

Com efeito, à medida que restou constatado que o contexto fático desenvolvido pelas vítimas em relação aos acontecimentos não encontra suporte no acervo probatório coligado, pois não superado o embate com os elementos de convicção que lhe são adversos, tem-se que a condenação dos apelantes pelo crime de tortura não merece subsistir frente à não demonstração da ocorrência dos fatos na forma até então retratada.

Dessa forma, diante da ausência de provas bastantes e suficientes quanto à superveniência das agressões capazes de causar intenso sofrimento físico aos ofendidos a fim de aplicar-lhes grave castigo pessoal e deles obter informações sobre crimes, merecem ser providos os recursos interpostos pelos recorrentes para que sejam absolvidos em relação aos crimes de tortura pelos quais foram inicialmente condenados, nos termos do art. 386, VII, do Código de Processo Penal.